Nem sempre é fácil lembrar que o território brasileiro foi dominado por indígenas. Não temos a facilidade de ver grandes monumentos, como no México ou Egito, nem construções espanholas erguidas sobre fundações incas, como no Peru. Talvez por isso existam no nosso imaginário noções tão equivocadas sobre os nativos do Brasil.
Possivelmente, a mais grave seja achar que todos os povos tinham costumes parecidos. Seria como dizer que italianos e noruegueses, por serem europeus, têm a mesma cultura. Há similaridades entre estes, sendo, por exemplo, ambos povos de tradição cristã, mas diferem em língua, culinária, temperamento e muito mais. Com os indígenas brasileiros, é mais ou menos isso.
Estamos falando de centenas de línguas, milhares de deuses e rituais, alguns específicos de uma região. Ainda assim, o topo do panteão, no geral, era de Monan, o deus criador, que deixou o mundo sob a guarda de Tupã, um deus do trovão. De toda forma, os nativos não cultuavam seus deuses, mas os ancestrais.
Dos deuses e dos heróis do passado, ouviam histórias em volta da fogueira, um emaranhado riquíssimo de narrativas com ares mitológicos. Imagine algo como a mitologia grega, também desenvolvida antes da escrita. Uma pena que, no caso da cultura dos nativos brasileiros, não foi registrada, como Homero fez na Grécia, então sobraram retalhos para imaginarmos com pesar o que se perdeu.
Andando pelas trilhas, logo se perceberia mudarem também as receitas culinárias, com ingredientes cuja variedade de norte a sul até hoje nos surpreende. Além dos caules, folhas, raízes e frutas, uma infinidade de carnes de caça e de pesca, entre macacos, aves, peixes, tartarugas, jacarés, capivaras, formiga tanajura e por aí vai.
Outro equívoco comum sobre os nativos é a ideia de uma ocupação esparsa. Ora, só na cidade do Rio de Janeiro, região de mata exuberante, os relatos falam em centenas de aldeias, cada uma com 400 a 4 mil pessoas. Desdobrando para o continente, seriam facilmente dez milhões de indígenas. Para se ter uma ideia, a capital do império Asteca, Tenochtitlán, pode ter chegado a 300 mil habitantes, uma das maiores cidades do mundo na época, superior a Lisboa, Paris e Madrid juntas.
No Brasil, não havia cidades tão grandes. Mas a ocupação era densa. Do alto de um morro em praticamente qualquer ponto perto do litoral, que tendia a ter maior densidade populacional, seria possível avistar várias aldeias no entorno, as suas malocas se sobressaindo no arvoredo, clareiras das praças centrais e das plantações, com ondulações pela mata mostrando o caminho dos rios e das trilhas. Algumas aldeias seriam aliadas entre si, habitadas por parentes mútuos. Mais comum era que fossem inimigas. Pois, enquanto as mulheres cuidavam das plantações e dos bebês, era da guerra que os homens se ocupavam. Como é o padrão histórico humano, o poder tendia ao patriarcado.
Aquele era um mundo complexo, divertido, dançado, de uma abundância que favorecia o ócio, mas com risco constante de ser capturado numa emboscada e acabar comido num ritual inimigo. As pessoas acreditavam que, comendo um guerreiro corajoso, pegariam um pouco daquela coragem. Por outro lado, nesse sentido, ser comido significava a própria coragem reconhecida pelo inimigo, portanto, uma honra. Entre os tupinambás, havia o ditado: “a tumba mais honrada é o estômago dos inimigos”.
Este fato, de comerem pessoas, até hoje é usado para detratá-los. Mas é bom ter em mente que, atualmente, os indígenas já não comem inimigos, assim como os portugueses abandonaram o costume de queimar bruxas, como era comum na mesma época. Muito do que somos hoje, a culinária, a higiene, uma profusão de chás medicinais, a relação com o quintal, muitas palavras na língua, a nossa característica étnica, tudo isso é herança de um riquíssimo caldeirão americano.
Neste Dia Nacional dos Povos Indígenas (19/04), deixo aqui a minha homenagem. Com coração radiante, dou um viva aos povos indígenas.
Víktor Waewell é escritor, autor do livro “Guerra dos Mil Povos”, uma história de
amor e guerra durante a maior revolta indígena do Brasil.