Imagine acordar em um dia qualquer, após um breve cochilo, e não lembrar de nada do que viveu nas três últimas décadas. Sua profissão, relacionamento, amigos, família: de repente, tudo desapareceu. Como se reconstruir após perder as lembranças dos principais momentos da vida? Esse foi o sofrimento real de Tom W. Kooper, professor de matemática que teve uma amnésia total em 2019, aos 50 anos. Baseado na experiência, o escritor publicou o romance policial Identidade, no qual ficcionaliza a própria história com uma boa dose de mistério.
Nesta narrativa, Alan Cerqueira sofre um acidente que muda o rumo da sua trajetória: quando o carro dele é alvejado por tiros, o respeitado médico recebe uma descarga elétrica que o faz esquecer de tudo. Enquanto luta para recuperar as memórias, o protagonista descobre segredos obscuros, como traições e desvios de dinheiro no hospital que administrava. Mas além de buscar pelo passado perdido, assim como o autor, o personagem inicia uma missão para desvendar a verdadeira face das pessoas que o cercam e para tentar sobreviver a uma conspiração que pode colocar sua vida em risco.
Hoje, Tom se divide entre dar aulas e escrever. Em entrevista, o autor conta sobre como transformou o hobbie da escrita em uma forma de resgatar a própria identidade. Ele também comenta sobre o impacto do trauma e como abordou isso no desenvolvimento da trama, trazendo para a ficção diversas reflexões existenciais. Confira abaixo:
1 – Sua experiência pessoal com a amnésia total é um aspecto único que influenciou diretamente a trama de Identidade. Como a sua própria jornada de recuperação de memórias influenciou a construção do protagonista e a narrativa como um todo?
Tom W. Kooper: A influência foi grande. Durante a terapia, foi-me sugerido escrever sobre a minha condição e sobre como eu passava os dias, na forma de um diário. A partir desses registros, construí o personagem Alan Cerqueira e todo o drama que ele passou na tentativa de recuperar as lembranças perdidas. A minha experiência pessoal com a perda de memória facilitou e deu profundidade na descrição de cada passo da jornada dele.
2 – Como foi o processo de transformar uma experiência tão pessoal e desafiadora em uma narrativa ficcional? Você encontrou alguma dificuldade em separar sua própria experiência da história que estava criando para o livro?
T.W.K.: Quando eu decidi escrever Identidade, eu já havia escrito um livro de estreia, A segunda chance de Thomas Lutter, e também havia recuperado uma boa parte das minhas memórias, o que facilitou na escrita desse segundo livro. Na época em que escrevi Identidade, tinham passado dois anos do ocorrido, e eu já compreendia melhor a minha situação, não havendo nenhuma dificuldade em abordá-la, mesmo de forma ficcional.
3 – Você acredita que sua experiência com a amnésia mudou sua perspectiva sobre a vida? Como?
T.W.K.: Essa é uma pergunta difícil de responder, uma vez que eu não me recordo da forma como eu enxergava a vida. Posso afirmar que houve mudanças de gostos e comportamento, relatados pelas pessoas mais próximas a mim. Hoje, eu me vejo como uma pessoa paciente, reflexiva, compreensiva, focada em viver o presente e aprender o máximo que posso sobre diversos assuntos. Apesar de ter sido um período difícil, sou grato pelo que me aconteceu, pois me proporcionou a ser quem eu sou hoje e a valorizar mais as minhas conquistas, a minha vida e as pessoas que fazem parte dela.
4 – Você começou a escrever como uma forma de recuperar as memórias. Como isso contribuiu para você se recordar das lembranças? E por que você decidiu enveredar pela ficção após iniciar o processo de escrita?
T.W.K.: Na verdade, a sugestão feita para que eu usasse a escrita como forma de terapia tinha como objetivo tirar o meu foco da busca pelas lembranças perdidas, pois estava me causando depressão e ansiedade. Foi a minha esposa que sugeriu que eu deixasse de escrever sobre o meu dia a dia pós-amnésia e contasse uma história de ficção, baseada em uma redação elogiada do meu ensino médio. Nascia ali o meu primeiro livro, A segunda chance de Thomas Lutter, inspirado no Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Minhas memórias foram sendo recuperadas quando me submeti a sessões de hipnose.
5 – Protagonista do livro, Alan Cerqueira é retratado como um personagem complexo, enfrentando não apenas a perda de memória, mas também dilemas éticos e emocionais. Como você desenvolveu a jornada interna de Alan e como a amnésia sofrida por ele afeta não apenas a percepção do mundo ao seu redor, mas também sua própria identidade e moralidade?
T.W.K.: Com a amnésia, Alan encontrou dificuldades nas relações pessoais e nas interações sociais, por não reconhecer as pessoas que faziam parte da sua vida pessoal e profissional, e por não saber se podia confiar no que lhe era dito. Apesar da perda de memória, o protagonista tinha uma noção do que era certo e errado, o que o levou a conflitos internos diante de descobertas de caráter questionável a respeito do seu passado e sobre as pessoas próximas, forçando-o a se posicionar.
6 – A capa do livro traz uma frase provocativa: “Se somos a soma das nossas experiências, então quem somos se todas as lembranças de uma vida desaparecem da noite para o dia?”. No desfecho, qual é a mensagem que você espera passar para seus leitores com essa trama?
T.W.K.: Nossa vida é muito frágil e, por isso, muito preciosa. Toda a nossa história, toda a nossa identidade é formada a partir de anos de experiências, de decisões certas e erradas. Perder todas as lembranças é desesperador, principalmente se você não sabe se vai recuperá-las, mas ao mesmo tempo, quando a mente silencia, é uma experiência reveladora, pois mesmo sem conhecimentos, sem crenças, sem referências, ainda nos restam valores intrínsecos à nossa vida e/ou à nossa personalidade mais básica. Esse é o primeiro item da nossa bagagem a ser carregada na nova jornada. Essa experiência é transformadora e uma grande chance para um recomeço livre de pesos, pressões e cobranças que impomos a nós mesmos.
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Sobre o autor: Tom W. Kooper é o pseudônimo de um professor de Matemática das redes públicas do Rio de Janeiro. Nasceu em 1968 e é pós-graduado em Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de sofrer uma amnésia total em 2019, começou a escrever como forma de terapia e descobriu na escrita o prazer de criar e contar histórias. Foi assim que se reinventou e descobriu uma nova paixão. Na literatura, estreou com o livro A segunda chance de Thomas Lutter e agora relança Identidade, um romance policial em que usa a experiência com a amnésia para construir o protagonista e um enredo repleto de mistérios.