O último pronunciamento do atual Presidente da República expõe o pensamento de boa parte da nação brasileira, quiçá, mundial: há “genocídio coordenado em massa” no contra-ataque do Estado de Israel à faixa de Gaza, e são os fatos concretos que demonstram essa máquina de horror, não opiniões em tal ou qual sentido político. Não há escusa exercível em defesa de qualquer liderança de Estado pelo fato de criar uma estratégia de desmantelo, perseguição e morte à determinada população.
Há uma confusão generalizada – alimentada pelo próprio Estado de Israel e sua máquina milionária de publicidade e informação – em misturar o conceito de “país” com o conceito de “povo judeu”, multi-citadino e espalhado ao redor do globo; bem assim, em misturar a aversão ao massacre em Gaza com antissemitismo ou antissionismo.
Israel fez – e ainda faz – sua luta para ser reconhecido como um país geograficamente estabilizado, e há no mínimo uma contradição jurídica entre esse desejo e colocar-se alheio à jurisdição da ONU, como um Estado que merecesse tratamento especial para seus equívocos, em razão do sofrimento histórico de seu povo, ou por fatos anteriores à sua própria pedra fundamental.
Lembremos: Israel foi criado em 14 de maio de 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial, justamente com a proposta de se tornar um porto seguro de paz e desenvolvimento para um povo perseguido. Propôs-se como uma página em branco para a criação de um novo futuro, mais feliz e pacífico.
Hoje é palpável estarmos diante do típico caso de “abusado” que se torna “abusador”, com Israel sob a visão embaçada do primeiro-ministro Netanyahu, renitente em ignorar os excessos das reações armamentícias do Estado que comanda. Reação estatal exacerbada que, frise-se, não é unânime nem dentre o próprio povo israelense e a nação judaica espalhada no mundo.
É importante lembrarmos que a morte de 6 milhões de judeus perpetrada durante a Segunda Guerra Mundial foi uma mancha à história da Humanidade – absurdo lembrado e relembrado com especial constância pela imprensa e audiovisual norte-americanos. Mas assim também foram (e são) as perseguições a inúmeras populações e grupos étnicos, vejamos: durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se que 10% da população polonesa tenha sido igualmente exterminada, incluindo quase 10 milhões de civis e prisioneiros de guerra (de diferentes etnias e sob diversas justificativas), mortos pelo regime nazista. Durante a década de 70, o povo cambojano teve 30% de sua população (ou aproximados 3 milhões de pessoas) eliminada pelo regime do Kmer Vemelho. Durante as primeiras décadas do século XX, a população armênia sofreu verdadeira limpeza étnica pelo Império Otomano, com o desaparecimento de cerca de 2 milhões de vidas civis.
Nas Américas, deu-se a chacina e extinção de povos ameríndios nativos (estimativas giram em 8 milhões), seguidas da importação por mão-de-obra escravizada de milhões de africanos de seus reinos originários. Só no Brasil, cometeu-se o desterro de 6 milhões de africanos (com estimativas de 1 milhão de mortos apenas no transporte marítimo) que foram subsequentemente escravizados, torturados e eliminados durante mais de 4 séculos, apenas no Brasil.
Sofrer pela mão cruel da natureza humana não é primazia de nenhum povo, em nenhum momento da história mundial.
Qual o valor de uma vida? Qual vida vale mais que outra? Morte é morte. Perseguição é perseguição.
O número de mortos em Gaza, segundo estimativas da imprensa internacional, já conta 40 mil pessoas, sendo que quase 2 milhões encontram-se sem acesso a água potável, comida e remédios. Não há como escapar de Gaza, num verdadeiro confinamento engendrado por Israel. Um campo prisional a céu aberto, cuja única saída é a morte.
Pois bem. Não há senso lógico na criação de escusas absolutórias para quem perpetra esse tipo de abuso, muito menos quando lembramos do passado de agressão e perseguição que o próprio povo judeu sofreu. Concordar com posturas armamentícias que exorbitam a defesa é, sim, concordar com a guerra pela dominação, com a morte como instrumento de expressão política.
Hoje, infelizmente, Israel se considera acima da lei internacional, ignorando o órgão que lhe apoiou a própria criação. Um país de verdade deve acreditar na igualdade dos seres humanos e saber quando jogar o jogo da paz.
*Leonardo de Moraes é mestre em Direito do Estado, professor de Direitos
Humanos e tabelião. Nas artes, é roteirista, artista visual e autor do romance
“Tia Beth”, sobre as dores e perdas dos períodos de violência no Brasil