Escritor de literatura fantástica, Antonio Carlos Brandão defende a ficção como uma forma de imaginar uma sociedade mais justa e pensar caminhos para a transformação. Por isso, no lançamento Verde, amarelo e outras cores, há Nova Ilusão, uma cidade utópica no sertão brasileiro que vive sob os preceitos de movimentos revolucionários e propagam filosofias mais conectadas à natureza. Ali, os cidadãos, independentemente de raça e gênero, vivem de forma pacífica. Mas, durante sua existência, a região enfrentará muitos embates com políticos e latifundiários.
“A ideia final é mostrar que, no Brasil, com uma natureza tão benevolente aos humanos, as filosofias do passado, bem como os conceitos religiosos trazidos com os conquistadores, não fazem falta alguma ao nosso povo”, explica o autor. Ele complementa: “expor uma utopia social faz sempre lembrar que podemos e devemos tentar. Na utopia, podemos entrar no mundo imaginário e montar uma sociedade mais justa”.
Confira abaixo a entrevista completa:
1 – Nova Ilusão é uma cidade utópica no sertão nordestino, no período pré-republicano, baseada nos princípios da Revolução Francesa. Como o movimento revolucionário da França pode ser pensado e adaptado para o Brasil?
Antonio Carlos Brandão: O movimento revolucionário francês foi um marco na história humana, quando começaram a cair os regimes absolutistas na Europa. Demorou um tempo, mas esses regimes foram sendo substituídos por democracias. Na ficção ambientada no Brasil, o sonho de Nova Ilusão iniciou no período pré-republicano, quando Adrien, descendente de revolucionários franceses, imaginou criar um lugar em que o lema Liberdade, Fraternidade e Igualdade pudessem ser revividos.
Cada vez mais em nosso país e em outros, a diferença social aumenta de forma que esse propósito da revolução francesa ainda funciona como sonho de uma sociedade. Hoje, alguns países da Europa do norte conseguiram algo muito próximo a isso.
2 – Para a construção da narrativa, você se baseou no deus de Spinoza, nas leis de Newton, na matemática de Pitágoras, entre outros. Na sua perspectiva, quais os benefícios de pensar um conhecimento múltiplo, que atravessa ciência, filosofia e religião?
A.C.B.: A ideia final é mostrar que, no Brasil, com uma natureza tão benevolente aos humanos, as filosofias do passado, bem como os conceitos religiosos trazidos com os conquistadores, não fazem falta alguma ao nosso povo. As ameaças do inferno e a preocupação com o pós-morte, por exemplo, não têm serventia. Nesse ponto, entra Spinoza com um conceito diferente de Deus: para ele, Deus é a Natureza. Ou seja, é a substância que forma o universo, e essa substância é absolutamente infinita, pois, se não o fosse, precisaria ser limitada por outra substância da mesma natureza. O conhecimento múltiplo é importante para comparação entre as diversas propostas teológicas, filosóficas e cientificas. Isso cria a mente interrogadora, ao contrário de dogmas religiosos.
3 – Frei Barbudo é o único sobrevivente da cidade e que mantém a memória da região viva. O que esse personagem representa para a trama?
A.C.B.: Frei Barbudo representa uma figura totalmente desprezada pelo Brasil oficial, que encontra em Nova Ilusão um novo significado para sua vida e prova que, para se falar em Deus, a teologia oficial não é necessária. Foi o mesmo que aconteceu com Spinoza, que era contra a teologia e não contra as religiões, mas, por isso, foi expulso da religião judaica e não aceito pela cristã. Frei Barbudo, um falso padre, é aceito em Nova Ilusão. Ele pensa em um Deus que não precisa de convenções, cátedras, templos, nem de intermediários para falar com Ele – semelhante à ideia de Spinoza de que Deus e natureza são a mesma coisa e que deve ser estudada, não adorada.
4 – A cidade de Nova Ilusão perdurou por pouco tempo, devido à reação da elite dominante. Que reflexões você buscou fazer ao traçar esse paralelo entre a revolução, o exercício da igualdade e o eventual fim dessa “ilusão” por causa de forças políticas e econômicas?
A.C.B.: O pensamento em uma utopia é bem antigo. Platão relata a conversa de Sócrates em “A República”. Já Thomas More cria definitivamente o termo “não lugar”, referindo-se a um lugar inexistente ou ideal. Depois vem outros, como “O Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e o “Jogo das Contas de Vidro”, de Hermann Hesse. Todos mostram um lugar que não existe e que, no fim, o sonho é desmantelado pela natureza – no caso, o homem. Com isso, voltamos a Spinoza, que diz que outra possibilidade não é aceita em nenhum outro conceito religioso. Se Deus e natureza são a mesma substância, não existe o livre arbítrio e não depende da vontade ou de uma submissão a um ser, mas de vários fatores inerentes a natureza. O mesmo acontece em Nova Ilusão.
5 – De que forma o realismo fantástico se insere na obra? Por que você escolheu esse gênero para a narrativa?
A.C.B.: Em seu livro “A Humanidade e a Mãe Terra”, Arnold Toynbee diz que o Homem é o único ser que habita dois mundos: a biosfera material, verificável e possível de sua atuação, e um mundo imaterial, não verificável e longe de sua atuação. Esse conceito não é novo. No período paleolítico superior, foram encontrados sinais de rituais fúnebres. A partir daí, o homo sapiens começou a se preocupar com o “pós-morte” e surgiram os conceitos de Deus, alma, espírito… A literatura fantástica permite misturar esses dois mundos que, a meu ver, vivemos no dia a dia. E, ao criar uma fantasia, podemos explicar o ainda não explicável no mundo material.
6 – Na sua visão, como pensar uma utopia pode contribuir para os debates sobre uma sociedade mais igualitária e respeitosa?
A.C.B.: Pensar no que não existe é uma forma de imaginar alguma coisa boa, que poderia existir, então sempre haverá alguém preocupado em adquirir sabedoria. O que significa saber se uma coisa inventada pelo homem, que é inteligência e não sabedoria, é boa ou não para a natureza ou Deus? Expor uma utopia social faz sempre lembrar que podemos e devemos tentar, mas há um paradoxo: se não temos livre arbítrio, isso é possível? E, contradizendo Spinoza, entramos na metamorfose da vida. Entramos em um ciclo de tentativas de viver melhor, que, a meu ver, é a vida simples do Brasil real. Na utopia, podemos entrar no mundo imaginário e montar uma sociedade mais justa.
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Sobre o autor: Médico com mais de 40 anos de experiência, doutor em Ciências da Saúde e professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Antonio Carlos Brandão publicou vários trabalhos na área científica. Em paralelo à carreira na saúde, também é escritor de literatura fantástica. Lançou o primeiro livro de ficção em 2015, “Murmúrio das Plantas”, que recebeu homenagem na Câmara Municipal de São José do Rio Preto. Agora, publica Verde, amarelo e outras cores, inspirado no realismo fantástico e na filosofia.