Talvez você esteja acostumado a livros de alta fantasia com reinos longínquos e brigas pelo trono porque, de fato, são temas importantes para a população europeia. Mas o que Giuliano Andreoli propõe em Crônicas de Ruamu: O Destino de Eneim é a aproximação dos leitores latino-americanos de seus próprios contextos de vida. Na obra, não existem conflitos para definir quem vai ter a coroa, mas questões como escravidão, colonização, racismo, tensões políticas e ditaduras, – tudo isso em um continente multirracial -, são alguns dos assuntos abordados pelo autor entre as páginas do livro.
Para o escritor e professor universitário, o processo de colonização internalizou a ideia de que o hemisfério Sul, mais especificamente a América e a África, era lar de povos sem cultura antes da chegada dos europeus. “Eu creio que isso tem a ver com o fato de muitas vezes não olharmos para o nosso passado, a nossa mitologia e a nossa cultura como uma fonte também fértil para criarmos histórias de ficção”, explica o autor.
Na entrevista abaixo, confira mais reflexões sobre a importância da descentralização de narrativas e da busca por uma identidade latino-americana na literatura:
1 – “Crônicas de Ruamu: O Destino de Eneim” constrói uma fantasia com elementos das mitologias de culturas latino-americanas. Que mitos você abordou com mais profundidade na obra?
Giuliano Andreoli: A história não é diretamente sobre os povos indígenas, mas sobre um continente multirracial (como o Brasil), com alguns povos de origem estrangeira e outros nativos, alguns vivendo em grandes cidades e outros em contato com a natureza. Mas a cultura indígena, sobretudo a tupi-guarani, foi a referência para alguns desses povos, com os quais os povos que vivem nas grandes cidades têm que lidar.
Assim, primeiramente, o leitor perceberá referências aos mitos das cidades perdidas da Amazônia, que foram uma invenção dos colonizadores espanhóis e portugueses, vistas como fontes de grandes tesouros, mas que, nesta obra, são nações tecnologicamente avançadas que existiram no passado. Primeiramente, os nomes de algumas nações (Eneim, Manoa, Paititi, etc) foram inspirados nos nomes dados ao Eldorado, que eram nomes que os colonizadores tomaram de certas nações indígenas reais. Em segundo, a mitologia indígena aparece na figura dos Kurupis (derivado de Curupira), dos Quinametzins e dos Tupãs, que, na obra, são raças não-humanas, de grande sabedoria e poder, já dadas como extintas, mas cujos remanescentes ainda vivem nas florestas e nas matas.
2 – Para você, qual a importância de aproximar a literatura fantástica dos aspectos culturais da América Meridional? Por que descentralizar essas narrativas eurocêntricas?
G.A.: A alta fantasia produzida por autores anglo-saxões bebe das fontes históricas e mitológicas de seus países. E nós, latino-americanos, consumimos muito esse tipo de histórias. Assim, temos o nosso imaginário povoado por elementos mitológicos ou históricos da Europa, mas muito pouco nas nossas próprias culturas e mitos. Apesar de já haver algumas obras que fogem a essa regra, no geral, na América Latina, a alta fantasia me parece ainda muito referenciada nos autores canônicos europeus. Porém, isso não faz sentido, se pararmos para pensar bem, pois a função básica da fantasia é dar asas à imaginação. Então, por que ficar presa a um modelo?
Eu creio que se J.R.R. Tolkien tivesse sido brasileiro, “O Senhor dos Anéis” não contaria com os elementos presentes no livro. Ele desenhou o seu universo dessa forma por ser europeu. Mas continuamos muito presos ao modelo de universo construído por ele. Uma questão que eu acho que influencia nisso é que a colonização impregnou em todos nós a falsa ideia de que, aqui no hemisfério sul (América e África), nós tivemos povos sem cultura e sem história, e que a história da Europa constituía a grande história universal da humanidade. Eu creio que isso tem a ver com o fato de muitas vezes não olharmos para o nosso passado, a nossa mitologia e a nossa cultura como uma fonte também fértil para criarmos histórias de ficção. Daí os Elfos, os Dragões, os Orcs e outros mitos europeus nos parecem sempre mais atrativos. Mas, através da ficção, eu acredito que é possível termos outro tipo de relação com o rico fundo cultural e mitológico latino-americano.
3 – O que os leitores podem entender e aprender ao se aprofundarem nessas histórias que são mais próximas dos contextos em que vivem?
G.A.: Histórias de alta fantasia visam o lazer através do escape momentâneo da realidade concreta. Mas elas também representam em suas narrativas questões profundas sobre a vida, a natureza humana, a honra, a guerra etc. E a maneira como isso é feito, na narrativa, pode refletir aspectos do mundo social onde o autor e os leitores vivem. Por exemplo, na alta fantasia anglo-saxã um tema recorrente são as disputas entre linhagens de reis pelo direito ao trono. E isso acontece porque tem a ver com a história nacional dos países europeus. No Brasil, nós não temos uma história política ligada a isso, nem sequer a monarquia tem o mesmo peso para nós.
No caso da minha história, eu abordo o tema da colonização, em sua articulação com o racismo, que me parece muito mais relacionado aos conflitos e tensões que constituíram alguns problemas da nossa sociedade atual. Outros temas que abordo são os conflitos políticos e a relação entre os povos que vivem nas cidades e os povos nômades (que são como os nossos indígenas) de Ruamu. E há também a questão da violência contra a mulher, que aparece no arco de uma das personagens secundárias. Essa personagem vive em uma nação que é representada com valores culturais mais retrógrados, e esse problema acaba aparecendo em sua vida. Esses são exemplos de temas bem próximos do contexto em que vivemos. Eles geram alguns dos conflitos que movimentam a trama. E os leitores podem refletir e aprender com os ensinamentos trazidos pelo destino a cada um dos personagens quando eles confrontam esses problemas.
4 – Você utiliza o enredo para tratar sobre temas como violência, racismo e dogmatismo religioso. Como esses assuntos tão atuais podem ser encontrados entre as páginas?
G.A.: Nessa obra, eu procuro retomar algo que já foi feito por autores como Robert Howard (“Conan”) e J.R. Tolkien (“O Senhor dos Anéis”): criar mundos fictícios com grandiosas civilizações que existiram no passado longínquo. Assim, na minha obra, a América do Sul está povoada por imensas nações, com cidades e templos grandiosos, como em qualquer uma dessas obras de alta fantasia. E só isso já é importante para desfazer um imaginário que por muito tempo se fixou em nossas mentes: a ideia de que apenas o hemisfério norte teve a capacidade de desenvolver grandes civilizações.
Na tradição dos mitos das civilizações perdidas, por exemplo, sempre foi muito comum elas serem representadas apenas como povos de raça branca. Isso aparece na literatura mundial nas histórias sobre Atlântida e outras. A minha história brinca um pouco com a subversão de tudo isso. A exemplo do nome da nação opressora estrangeira, Schwertha, retirada da obra Crônicas de Akakor, que compõe parte desse imaginário colonial que divulgou a ideia de povos de raça branca construindo civilizações avançadas no passado da América do Sul. Na história desse livro, Schwertha está ligada aos invasores do continente de Ruamu que pregam uma doutrina de superioridade racial – em referência ao nazismo. E eles procuram justamente tentar desacreditar que os povos ancestrais de Ruamu produziam tecnologias muito avançadas.
O dogmatismo religioso, por outro lado, está ligado a outro eixo da história, que é uma instituição religiosa chamada susejismo, um dos ramos de uma religião milenar que existe no continente de Ruamu. Há muitos pontos de vista divergentes sobre a doutrina. E há debates entre os personagens susejistas mais fanáticos e os susejistas que seguem orientações mais progressistas ou pacifistas. Esses dois eixos constituem, por assim dizer, os principais antagonismos aos personagens centrais da trama e é o que gera os posicionamentos dos heróis e vilões.
5 – Como as trajetórias dos personagens Lagnicté e Narsciti conseguem se aproximar dos contextos de vida dos leitores? O que é possível apreender da história deles?
G.A.: Cada personagem tem um arco que traz algum drama. A personagem central, Lagnicté, é uma figura política envolta no dilema de iniciar ou não iniciar uma guerra para tentar libertar o seu país. Dael é um dos melhores guerreiros do seu tempo, mas deseja viver uma vida de paz. Ambos vivem o dilema de terem que cumprir com aquilo que é colocado para eles como um dever, sem que eles tenham pedido ou desejado por essa demanda. Narsciti, por outro lado, é um personagem cujo arco está relacionado ao desejo por vingança. A morte de seus pais, na sua infância, justamente por aqueles contra quem ele agora luta, faz com que ele tenha que lidar com os limites entre a justiça e a vingança.
Há personagens que são dotados de grandes poderes e precisam aprender a controlá-los. E há aqueles que são pessoas comuns, mas estão envoltas também em demandas de luta por justiça. Há uma reflexão permanente sobre o tema do poder, sobre como ser mais poderoso não torna alguém necessariamente melhor ou superior. Também há uma reflexão permanente sobre a guerra, de um ponto de vista humanístico.
6 – Como foi o processo de pesquisa para a construção deste universo?
G.A.: A construção do universo contou com um amplo processo de pesquisa que envolveu a pesquisa sobre o contexto da pré-história sul-americana e dos mitos da América do Sul colonial. Contou também com a leitura de algumas fontes usualmente utilizadas por obras de ficção, como a teosofia de Helena Blavatsky, o mito tibetano de Agartha, o livro “O Continente de Mu”, de James Churchward, e “Crônicas da Akakor”, de Karl Bruguer, para criar o contexto cultural dos antagonistas. A religiosidade indígena (tupi-guarani), além de nomes indígenas e nomes de deuses compôs o universo dos povos nômades e das principais nações.
Já para inspirar as reflexões espirituais e os debates políticos e religiosos entre os personagens, inspirei-me em autores como Gibran Khalil Gibran, Mikhail Naimy, Frantz Fanon, Friedrich Nietzsche e Piotr Kropotkin, além de referências ao cristianismo, budismo e taoísmo. Alguns acontecimentos verídicos serviram de inspiração para alguns acontecimentos do enredo: o incêndio da biblioteca de Alexandria, a perseguição aos heréticos cristãos, os Cavaleiros Templários e a Franco-Maçonaria, as revoluções camponesas na Alemanha, o nazismo e o surgimento da extrema-direita no Brasil. Para criar uma das personagens, eu me referenciei em Malala Yousafzai. Há, na obra, também uma referência a “Macunaíma”, de Oswald de Andrad e a “Crônicas de Atlântida: O Tabuleiro dos Deuses”, de Antônio Luiz M.C. Costa.
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Sobre o autor: Giuliano Andreoli é professor universitário, mestre em Educação e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Pedagogias do Corpo, tem uma formação multiartística nas áreas da dança, teatro, circo e artes marciais. É também pesquisador dessas artes em intersecção com a Educação, e possui diversas publicações de artigos em periódicos científicos na área dos estudos socioculturais.
Na literatura assina o livro “Dança, gênero e sexualidade: Narrativas e Performances” (2019), pela editora Apris. Na área de ficção, publicou os contos “Os Espíritos do Deserto”, na Antologia “Guardião das Areias” (2023), e “Wendigo”, na Antologia “Sangue e Prata” (2024), ambos pela editora Medusa. Publicou ainda “Horror Noturno”, na Antologia “Chamado das Sombras” (2024), pela editora Dark Books.
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